A recente estreia de uma série da RTP2 sobre o banqueiro alemão Alfred Herrhausen, presidente do Deutsche Bank, recordou-me a necessidade de revisitar um passado já distante chamado Muro de Berlim. Foi entre a neutralidade recusada e a reunificação apressada, que a Alemanha se tornou o espelho das promessas quebradas de uma paz possível entre a então URSS e o ocidente.
A história oficial dirá sempre que o Muro de Berlim foi o símbolo mais visível da "opressão comunista" - e, por extensão, que o seu derrube representou a libertação de um povo. Mas, como em tantas histórias contadas pelos "vencedores", há páginas que ficaram por ler e perguntas que nunca se quiseram fazer.
A verdade é que a divisão da Alemanha não era inevitável. Foi o resultado direto de uma escolha política - não apenas de Moscovo, mas também de Washington e dos seus aliados - quando se recusou uma proposta que, à luz da história, talvez tivesse evitado meio século de tensão: a neutralidade alemã.
A proposta de Stalin: uma Alemanha unificada e neutra
Logo após a derrota nazi, Stalin não queria uma Alemanha dividida, nem tampouco uma fronteira militarizada no coração da Europa. O que pretendia era uma Alemanha desmilitarizada, fora de qualquer aliança militar, que servisse de zona tampão entre o Leste e o Ocidente - uma “Áustria do Norte”, como alguns historiadores lhe chamaram mais tarde. No fundo, aquilo que Putin quer hoje da Ucrânia.
Os russos, traumatizados por duas invasões alemãs em menos de trinta anos, temiam sobretudo a reconstrução de um poder militar no Ocidente europeu sob tutela americana. A ideia de uma Alemanha unificada mas neutra era, portanto, uma garantia de segurança mútua - mas Roosevelt, Churchill e mais tarde Truman rejeitaram-na.
A visão ocidental era outra: uma Alemanha economicamente reconstruída pelo Plano Marshall, integrada num bloco atlântico e convertida em bastião do capitalismo europeu. A partir daí, as fronteiras ideológicas transformaram-se em fronteiras físicas.
A divisão e o peso da “ocupação”
Quando se fala da “ocupação soviética” na Alemanha Oriental, omite-se que a Alemanha Ocidental também permaneceu sob ocupação militar direta dos EUA, Reino Unido e França durante quase uma década. Ambas as zonas viveram sob regimes controlados - um pela ortodoxia soviética, outro pela tutela económica e política de Washington.
Enquanto o Leste via nascer o modelo socialista e a planificação central, o Ocidente convertia-se no laboratório da reconstrução neoliberal e da integração atlântica. O “muro de pedra” que separaria Berlim em 1961 apenas materializou o muro político já traçado anos antes nas conferências de Yalta e Potsdam.
O colapso e a “reunificação programada”
Décadas depois, com o colapso económico soviético e a fadiga política da RDA, surgiram figuras que tentaram salvar uma ideia alternativa de unidade - entre elas, o banqueiro Alfred Herrhausen, presidente do Deutsche Bank. Ele propunha um plano ousado: reconstruir o Leste europeu com base numa cooperação económica equilibrada, uma espécie de “Plano Marshall para o Oriente”, que integrasse, em vez de absorver, a Alemanha Oriental.
Teria sido, talvez, o caminho para uma reunificação justa e gradual, onde o Leste não fosse simplesmente comprado e desmantelado. Mas Herrhausen foi assassinado em 1989, poucas semanas após a queda do Muro. A sua morte, ainda hoje envolta em sombras, marcou o início de uma reunificação conduzida pelos mercados, não pelas vontades dos povos.
O “fim” do Muro foi, afinal, o início de outra forma de muro - económico, invisível, erguido entre o Leste e o Oeste, onde um país inteiro aprendeu que a liberdade também pode vir acompanhada de desigualdade e perda.
O "muro interior" da Europa
O Muro de Berlim caiu, sim. Mas o espírito que o ergueu - o medo, a desconfiança e a lógica de blocos - sobreviveu noutras formas: na expansão da NATO para o Leste, na exclusão económica dos países ex-socialistas e, mais recentemente, no regresso das fronteiras ideológicas entre “democracias liberais” e “autocracias”.
O que se recusou em 1945 - a neutralidade como ponte - poderia ter sido a verdadeira fundação da paz europeia. Mas preferiu-se a força das alianças à força do equilíbrio. E assim, entre muros de pedra e muros invisíveis, a solução foi apenas adiada.
Hoje esse Muro está enorme. Cobre os milhares de quilómetros que percorrem a Europa de sul a norte. E o lado de cá desse Muro sofre as consequências da sua escolha: economia débil, dificuldades energéticas, quedas sucessivas de governos, insatisfação dos seus cidadãos, problemas geopolíticos da "segurança" que outros lhe davam e, finalmente, 27 nações que não se entendem associadas a uma UE que não tem um caminho próprio. Do outro lado desse Muro uma Rússia que optou por olhar para o "outro lado" e voltar costas ao Muro. Constrói não muros mas caminhos, que outros tentam derrubar.
Quem conseguirá olhar por cima deles?
Autor: João Gomes in facebook