Nada que já não se soubesse. Tanto Mário Soares como Fidel Castro — entre tantos outros ilustres estadistas — já o tinham advertido.
A declaração recente atribuída ao almirante Giuseppe Cavo Dragone, chefe do Comité Militar da OTAN, segundo a qual a aliança deveria ponderar um ataque preventivo contra a Rússia em resposta a alegados “ataques híbridos”, não surge como um mero excesso verbal nem como um descuido diplomático. É, antes, um sintoma revelador da degradação estratégica, intelectual e moral das elites atlânticas — elites que, incapazes de aceitar o mundo tal como ele é, procuram moldá-lo à força ao delírio geopolítico que alimentam desde 1945.
Não surpreende, por isso, que se tente rebatizar a agressão como “autodefesa”. O eufemismo é antigo, mas a ousadia é nova. Subverter o sentido de autodefesa — princípio-chave da ordem internacional — é rasgar, sem pudor, as páginas da Carta das Nações Unidas que proíbem explicitamente o uso da força na ausência de um ataque armado real. Mas, para quem governa por ansiedade e propaganda, a letra da lei vale menos do que o medo que consegue insuflar nas sociedades.
O tão repetido conceito de “ataque híbrido” tornou-se, entretanto, um guarda-chuva retórico que acolhe todo o tipo de fantasia securitária: da sabotagem a um rumor amplificado, da desinformação a um meme infeliz. A elasticidade do conceito é a medida da sua inutilidade — e também da sua perigosidade. Se um boato bastasse para justificar um bombardeamento, nenhuma ordem internacional sobreviveria à imaginação das potências.
Segundo o Financial Times, a pressão para que a OTAN avance da “preocupação” para a “firmeza” provém essencialmente da Europa Oriental — ironicamente, dos governos mais inseguros e mais dependentes da retórica do medo para manter a autoridade interna. Governos frágeis, nacionalistas, frequentemente construídos sobre ressentimentos étnicos e fantasmas históricos, transformam a aliança num megafone das suas paranoias, procurando projetar sobre o continente europeu as suas próprias incertezas existenciais.
Quando Varsóvia, Vilnius ou Riga exigem medidas mais “corajosas”, não defendem um princípio: defendem a sua estratégia de sobrevivência política. As inquietações locais transformam-se em exigências globais. E a OTAN, acéfala, vai cedendo.
Converter a segurança europeia no prolongamento das angústias domésticas de meia dúzia de capitais periféricas é tão irresponsável quanto perigoso — um erro estratégico digno das forças políticas que, noutras latitudes, corroeram os seus próprios Estados, como bem se viu na Guiné-Bissau.
Mais perturbador ainda é ver o próprio almirante Dragone reconhecer a fragilidade da sua tese. Afirma que um ataque preventivo poderia ser “enquadrado como autodefesa”, mas admite logo de seguida não saber como, nem com que base legal, nem sob que jurisdição. É a confissão involuntária de uma aliança que já nem tenta ser coerente. Tem pressa, não tem pensamento. Tem reflexos, não tem estratégia. Fala de guerra como quem comenta desporto, esquecendo que as palavras de um alto comando têm consequências reais — e que certas frases, uma vez pronunciadas, abrem portas que já ninguém é capaz de fechar.
A narrativa dos “ataques híbridos” russos serve para ocultar o que realmente está em causa: o desmantelamento dos mecanismos de segurança que garantiam previsibilidade (quase todos destruídos pelos Estados Unidos); a expansão incessante da OTAN até às fronteiras russas; a instrumentalização do medo como método de governo; e a decadência estratégica da Europa, reduzida a uma plateia obediente da política externa americana, mesmo quando esta arruína as suas próprias economias.
Nos seus discursos, a OTAN gosta de se apresentar como guardiã da ordem internacional. Na prática, tem sido um dos seus maiores agentes de corrosão.
Ao elogiar a doutrina da agressão preventiva, a aliança não apenas afronta o direito internacional — afronta o próprio princípio de civilização que impede os Estados de regressarem ao estado selvagem.
Se cai o princípio elementar de não atacar primeiro, cai tudo: cai a diplomacia, cai o Estado de Direito, cai qualquer noção de previsibilidade. O que sobra é a lei do mais forte — um sistema em que a irracionalidade deixa de ser vício para se tornar virtude, e em que o cálculo frio cede lugar ao instinto destrutivo, animalesco.
Alguns analistas garantem que o debate interno na OTAN “nunca esteve tão aceso”. É natural. Quando uma aliança militar começa a discutir seriamente medidas que a conduziriam a uma guerra direta com uma potência nuclear, isso não revela força. Revela desorientação. Revela fanatismo. Revela irresponsabilidade no seu estado mais puro.
A OTAN fala alto porque tem medo. Grita porque está perdida. A agressividade verbal é o disfarce do vazio estratégico. E o recurso a ideias como “ataque preventivo” mostra uma aliança incapaz de oferecer qualquer solução real para a segurança europeia — preferindo, em vez disso, brincar à beira do abismo, tal como havia alertado o Dr. Mário Soares, antigo Primeiro-Ministro e Presidente da República de Portugal.
Esquecendo, contudo, que os abismos têm sempre a mesma resposta para quem se inclina demasiado sobre eles.
Que Deus nos proteja da irracionalidade primitiva dos que comandam o Estado Profundo — porque deles já não podemos esperar prudência; apenas recear a próxima imprudência.
Autor: Adriano Pires in Facebook