Havia expectativa. Havia entusiasmo. Havia até um certo brilho nos olhos de quem sonhava com uma nacionalidade com prazo de validade, revogável “em bom português” quando o cidadão deixasse de se portar como devia. A Lei da Nacionalidade revista, endurecida e musculada, era apresentada como sinal de firmeza do Estado. Um recado. Um instrumento pedagógico. Um agrado claro a um eleitorado muito específico, para quem direitos fundamentais são sempre negociáveis desde que não sejam os seus.
O problema foi outro. A lei chegou ao Tribunal Constitucional e, aí, não passou.
E convém ser claro desde o início: não foi apenas a famosa norma da perda de nacionalidade que caiu, apesar de essa ter ocupado as noticias e inflamado os discursos. O que o Tribunal fez foi bem mais incómodo para os seus defensores: desmontou uma concepção inteira de cidadania que o diploma tentava normalizar.
O TC começou por dizer o óbvio constitucional, que parece precisar de reaprendizagem cíclica: a nacionalidade não é uma licença administrativa, nem um prémio revogável por mau comportamento. Não é uma pena acessória, nem um instrumento de intimidação penal. É um vínculo jurídico-político estruturante. Mexer nele exige uma delicadeza que o legislador, embalado pelo aplauso fácil, claramente dispensou.
Mas o Tribunal não ficou por aí. Foi mais longe e mais fundo. Recordou que a Constituição não conhece portugueses “mais portugueses” do que outros. Uma vez atribuída, a nacionalidade coloca todos no mesmo plano. Criar um regime em que apenas os naturalizados podem perder esse estatuto é institucionalizar, por via legal, uma cidadania condicional. Uma espécie de contrato a prazo, sempre dependente da boa conduta e da paciência do Estado. O TC disse, em bom português, aquilo que em linguagem simples soa assim: não há portugueses de primeira e de segunda.
Depois vieram os problemas técnicos, que raramente empolgam as redes sociais mas são fatais em tribunal. Normas vagas, conceitos elásticos, articulações confusas entre direito penal e direito da nacionalidade. Tudo aquilo que viola a segurança jurídica e a previsibilidade do direito - sobretudo quando as consequências são graves, irreversíveis e existenciais. O Tribunal lembrou que o Estado de direito não funciona por “logo se vê”.
E, como se não bastasse, assinalou a ausência de garantias procedimentais minimamente robustas. Nada de regime autónomo, nada de contraditório reforçado, nada de ponderação individual séria. Uma decisão desta magnitude era tratada quase como um efeito colateral da sentença penal. Para o TC, isso foi simplesmente inaceitável.
O resultado é conhecido e politicamente indigesto: o diploma não pode ser promulgado, não entra em vigor e não se salva com um simples corte cirúrgico da norma mais polémica. O problema não era um artigo mal comportado. Era a lógica inteira.
As consequências são claras. Juridicamente, mantém-se o regime anterior. Politicamente, fica um aviso difícil de ignorar: não é possível governar direitos fundamentais ao ritmo do comentário televisivo ou da agenda da extrema-direita, por muito “querida” que a lei fosse nesses círculos. Constitucionalmente, o recado é ainda mais seco: a cidadania não é um instrumento disciplinar.
No fim, sobra a ironia. Uma lei apresentada como demonstração de força acabou por revelar fragilidade conceptual. Uma tentativa de dividir acabou por reforçar um princípio básico: ou a nacionalidade é plena, ou não é nacionalidade nenhuma. O Tribunal Constitucional limitou-se a lembrar isso. Com rigor. E sem aplausos.
Auto: João Gomes in Facebook