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Os resistentes
Publicado em 28/12/2025 19:00
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Há seres humanos que persistem em acreditar quando acreditar já não é cómodo. Não por desconhecimento do mundo, mas por lucidez suficiente para perceber que a realidade dominante não é sinónimo de verdade última. São os resistentes. Não marcham em bloco nem levantam bandeiras ruidosas; sobrevivem, antes, na obstinação silenciosa de quem se recusa a aceitar que a injustiça seja natural e a desigualdade inevitável.

 

Carregam consigo ideologias feridas, muitas delas declaradas mortas pelos vencedores da história. Dizem-lhes que falharam - e falharam, é certo, não poucas vezes. Mas os resistentes sabem que muitas dessas falhas não nasceram das ideias em si, mas da sua captura: pela má condução política, pelo autoritarismo travestido de redenção, ou pela imaturidade de sociedades que ainda não compreendiam que a força coletiva não anula o indivíduo – protege-o.

 

Vivem hoje cercados por um liberalismo económico que se apresenta como horizonte único, como se fosse uma lei da natureza e não uma construção histórica. Um sistema que absolutiza o mercado, privatiza o risco, socializa o fracasso e chama liberdade à sobrevivência competitiva. Um sistema que mede o valor humano pela produtividade, a dignidade pelo rendimento e a vida pela sua utilidade económica.

 

Nesse mundo, a precariedade deixou de ser exceção para se tornar condição existencial. O trabalho já não garante futuro; apenas adia a queda. A riqueza cresce, mas escorre para cima, concentrada em elites cada vez mais desligadas da vida comum. Fala-se de mérito para justificar heranças, de eficiência para legitimar cortes, de inevitabilidade para anestesiar consciências.

 

Os resistentes não ignoram isto. Pelo contrário: é por verem com clareza que não desistem. Sabem que a promessa de uma sociedade mais justa foi traída, mas recusam aceitar que tenha sido uma ilusão. Recusam confundir o erro histórico com a falência moral da ideia de solidariedade. Continuam a acreditar que o trabalho e o fruto do trabalho não podem existir apenas ao serviço de poucos, enquanto muitos vivem numa permanente economia do medo.

 

Chamam-lhes ingénuos. Sonhadores fora do tempo. Mas talvez sejam apenas aqueles que ainda não se renderam ao cinismo como forma superior de inteligência. Procuram a bondade acima do materialismo, a concórdia acima da disputa permanente, o bem comum acima da acumulação privada. Não porque ignorem o conflito, mas porque sabem que uma sociedade organizada exclusivamente em torno dele acaba por se devorar a si própria.

 

Os resistentes não prometem paraísos. Sabem que nenhuma organização humana é perfeita. O que recusam é a normalização da injustiça, a glorificação da desigualdade, a ideia de que não há alternativa. Persistem não por esperança fácil, mas por responsabilidade ética. Porque desistir seria aceitar que o mundo é apenas aquilo que o poder permite - e nada mais.

 

E enquanto houver quem resista assim, sem garantias, sem aplauso e sem recompensa, a história não se fecha. Fica suspensa. Inquieta. À espera de que alguém volte a lembrar que viver em sociedade não é competir até ao esgotamento, mas partilhar o risco, o trabalho e a dignidade de existir.

 

 

Autor: João Gomes in facebook

 

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