Os ecos da Guerra Fria continuam a crescer no panorama internacional. À medida que o segundo mandato de Trump na Casa Branca se desenvolve, o choque entre potências imperialistas torna-se mais explícito. A China, que desde a cimeira da OTAN em Madrid, organizada durante o mandato de Joe Biden, é identificada como um «desafio», surge como o principal polo de preocupação para os EUA. Os seus parceiros europeus preferem apontar a Rússia, mas as advertências contra a China estão a aumentar.
Num debate sobre «a fraqueza da Europa» organizado pela Comissão Europeia, a representante da União para os Negócios Estrangeiros, Kaja Kallas, alertou que não se pode cometer com a China «o mesmo erro» que se cometeu com a Rússia. Kallas, que chegou a reinterpretar a história questionando que tanto a Rússia como a China se considerem vencedoras da Segunda Guerra Mundial, dedicou grande parte da sua intervenção a denunciar o que chamou de «problema chinês», resumido por Kallas em dois pontos: o apoio à Rússia e as «práticas económicas coercivas» levadas a cabo por Pequim, práticas que a máxima responsável pela política externa não explicou. Em resposta ao ataque de Kallas à identidade da China — muito marcada pela vitória sobre o Japão —, na sexta-feira, o Ministério do Comércio da China anunciou tarifas temporárias de 62% sobre a carne de porco europeia.
Kallas detalhou quais países devem fazer parte da aliança com a União Europeia que deve se opor tanto à Rússia quanto «para abordar a preocupação chinesa». Esse grupo é formado pelos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Japão, Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia, México e Índia. Precisamente em torno deste último país, recentemente punido por Donald Trump com tarifas de 50% por suas relações comerciais com a Rússia, girou a reestruturação dos blocos vislumbrada nas últimas semanas.
O próprio Trump, através da sua rede social Truth, contradisse o desejo de Kallas e deu como certa a aliança em torno do antigo império do centro. «Parece que perdemos a Índia e a Rússia para a China mais profunda e obscura. Que tenham um futuro longo e próspero juntos», escreveu o presidente norte-americano na sexta-feira, dia 5.
A punição de Trump à Índia é o gatilho para que o país liderado por Modi reoriente a sua política económica, até agora baseada na competição industrial com a China.
A posição em relação à Índia é um dos pontos de discórdia entre a Comissão Europeia e os Estados Unidos, apesar de a equipa de Ursula Von der Leyen continuar a sublinhar a melhoria das relações com Trump após a assinatura do acordo no campo de golfe de Turnberry neste verão. Durante o referido debate, Kallas reconheceu que o acordo «não é perfeito», mas que permitiu que as relações com os EUA «melhorassem muito».
Índia lança-se nos braços da China
O encontro entre Vladimir Putin, Narendra Modi e Xi Jinping na China, para a celebração do 25.º Fórum da Organização de Cooperação de Xangai (OCS), redefiniu um pouco mais as coordenadas da geopolítica internacional esta semana.
O encontro entre Putin e Jinping não é novidade — eles já se encontraram cerca de cinquenta vezes —, mas a presença de Modi na China e o tom dessa visita, a primeira em sete anos, foram interpretados como um desafio a Donald Trump e à União Europeia. Há apenas cinco anos, os dois países mais populosos do mundo registaram um confronto militar de baixa intensidade na zona de Aksai Chin e, recentemente, houve um início de «guerra da água» devido à megabarragem anunciada pela China para o Tibete. Nada de especialmente grave, mas sintomático de uma relação histórica conflituosa que, esta semana, foi interrompida pela declaração de amizade de Modi.
A punição de Trump à Índia é o gatilho para que o país liderado por Modi reoriente a sua política económica, baseada no crescimento da indústria, e seja obrigado a abandonar a competição com a China para explorar vias de colaboração que, até à imposição de tarifas por Trump, pareciam encerradas.
O anúncio mais importante foi a futura construção do gasoduto Power of Siberia 2, que deverá permitir o transporte de 50 mil milhões de metros cúbicos de gás por ano da Rússia para a China.
O desfile que se seguiu, comemorando o fim da Segunda Guerra Mundial e, portanto, também da Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945), não foi anedótico. O governo de Jinping, novamente com a presença de Putin e, para a ocasião, também do líder norte-coreano Kim Jong Un, exibiu novas armas, como mísseis hipersónicos com capacidade aparente para atingir alvos nas bases americanas no Pacífico, drones com capacidade para «mudar o futuro da guerra aérea», segundo a propaganda militar chinesa, um robô-lobo para operações de infantaria e outros equipamentos militares.
Entre as anedotas mais marcantes está uma conversa com o microfone aberto — possivelmente provocada para que ficasse registada — em que Jinping (72 anos) e Putin (72 anos) conversam sobre a possibilidade de prolongar as suas vidas através da biotecnologia e dos transplantes. Jinping acredita que será possível viver até aos 150 anos e o seu homólogo russo fala em alcançar a imortalidade. Uma mensagem pouco subtil numa semana marcada por rumores sobre o estado de saúde de Trump (79 anos) e boatos sobre o encobrimento da sua morte que circularam pela Internet no último fim de semana de agosto.
A cooperação entre os dois países também saiu reforçada do encontro. A Rússia e a China assinaram acordos de colaboração nas áreas da energia, aviação, inteligência artificial, meios de comunicação e agricultura. O anúncio mais importante, no entanto, foi a futura construção do gasoduto Power of Siberia 2, que deverá permitir o transporte de 50 mil milhões de metros cúbicos de gás por ano durante 30 anos da Rússia para a China. Antes da construção, já foi acordado o aumento do comércio de gás entre os dois países.
Para a Rússia, é uma lufada de ar fresco num momento crucial das negociações com a Ucrânia. De Kiev, Zelensky insiste que a economia russa está realmente prejudicada e, embora seja necessário desconsiderar o componente propagandístico dessa afirmação, o projeto de exportação em massa chega num momento importante, em que os EUA querem que mais países fechem a torneira do gás russo para colocar o seu gás natural liquefeito no mercado.
A coligação dos dispostos e o Prémio Nobel da Paz
Simultaneamente, a reunião que teve lugar a 4 de setembro entre quase uma trena de líderes europeus na chamada «Coligação dos Dispostos» mostrou quais são os apoios da Ucrânia no cenário mundial. Desses, 26 comprometeram-se a «envolver-se diretamente» nas operações, algo que ainda não se sabe bem quais serão as consequências reais. No grupo estão representados todos os países da UE, exceto a Eslováquia, a Hungria e Malta.
«Não há limitações para a defesa da Ucrânia». As palavras de Emmanuel Macron na quinta-feira, dia 4, sugeriram, mais uma vez, as possibilidades de colocar as botas no terreno, um eufemismo para aludir à intervenção direta de um exército multinacional no território em disputa. Por seu lado, Volodimir Zelensky saiu satisfeito da reunião, na qual obteve novas propostas de financiamento, rearmamento e a promessa do 19.º pacote de sanções à Rússia.
Após a reunião de quinta-feira, o presidente da Finlândia explicou à imprensa que Trump tinha pedido colaboração em matéria energética para privar a Rússia das suas receitas de gás e petróleo.
Apesar de Macron ter lançado a possibilidade de enviar tropas para o terreno em várias ocasiões ao longo dos três anos de recrudescimento da guerra na Ucrânia, a reunião continuou a lançar dúvidas sobre essa intervenção que, segundo o presidente francês, ocorreria em zonas geográficas ainda por determinar, em qualquer caso «não na linha da frente».
Por exemplo, não ficou claro quais seriam as características dessa força militar, cujo efetivo inicial foi calculado em cerca de 30.000 soldados. Macron tem sido o líder europeu mais veemente em avaliar essa possibilidade. Keir Starmer garantiu em março que apoiaria Kiev «com botas no terreno e aviões no ar», mas os relatos da estranha reunião que Putin e Trump mantiveram em agosto e que terminou sem acordo sobre a Ucrânia podem ter influenciado um certo arrefecimento do entusiasmo dos trabalhistas pela incursão terrestre.
O cenário atual, marcado pela possibilidade de um cessar-fogo «à Trump», implica para os aliados da Ucrânia a necessidade de estabelecer garantias de segurança uma vez decretado o fim da guerra, algo que não contradiz o trabalho sotto voce que, segundo vazou a Casa Branca à Axios, vários países da UE estão a fazer para «prolongar a guerra e criar expectativas [à Ucrânia] pouco razoáveis».
Os escassos avanços da cimeira do Alasca levaram Trump a anunciar que, se a situação não for desbloqueada nos termos propostos pela Casa Branca, os Estados Unidos avaliarão a possibilidade de se juntar à «coligação dos dispostos». Após a reunião de quinta-feira, o presidente da Finlândia, Alexander Stubb, explicou à imprensa que Trump tinha pedido colaboração em matéria energética para privar a Rússia das suas receitas de gás e petróleo. Segundo a Casa Branca, os países da UE compraram 1,1 mil milhões de euros em combustível num ano.
Os avanços para o cessar-fogo na Ucrânia continuam escassos, embora o próprio Trump tenha anunciado que será possível «anunciar algo» e insistido que merece o Prémio Nobel da Paz pelos seus esforços. Segundo se soube após a reunião dos «dispostos», a Ucrânia, apesar de receber apoio ocidental por tempo indeterminado, renunciaria a entrar na OTAN. No entanto, segundo foi informado, os «dispostos» estão empenhados em que entre as garantias à Ucrânia esteja a ativação de um seguro — ao estilo do artigo 5.º de defesa coletiva da OTAN — que comprometa os Estados aliados da Ucrânia a intervir militarmente se a Rússia violar os compromissos de um hipotético cessar-fogo.
Desde a OTAN, Mark Rutte não insinuou que a adesão da Ucrânia à estrutura atlântica já não seja possível, mas isso é algo que depende, em última instância, dos EUA. A 18 de agosto, Trump garantiu que a Ucrânia não entrará na OTAN e que também não recuperará a Crimeia, território ucraniano administrado pela Rússia desde 2014.
«Não tenho nenhuma mensagem para o presidente Putin. Ele sabe qual é a minha posição e tomará uma decisão num sentido ou noutro», declarou Trump, que insinuou punições à Rússia se a resposta à proposta de resolução americana for negativa. A Casa Branca transmite pessimismo quanto ao fim da guerra e ao início do conflito pós-guerra, o que aumenta as críticas à Rússia. Mas não se perde de vista que o seu concorrente na disputa imperialista do século XXI é a China e que, esta semana, o país de Xi Jinping mostrou algumas das cartas que tem na manga para enfrentar os seus adversários.
Autor: Pablo Elorduy
Imagem: IA
Fonte: https://www.elsaltodiario.com/militarismo/encuentros-union-europea-ucrania-declaracion-tianjin