Mais de cinco milhões de pessoas caíram na pobreza no primeiro semestre do ano, o que leva quase 53% da população a não ter suas necessidades básicas satisfeitas, segundo estatísticas oficiais.
Quando assumiu a presidência em 10 de dezembro, Javier Milei garantiu que com ele começaria o fim da decadência argentina. Seis meses depois, em meio a um ajuste fiscal sem precedentes, o país exibe outra realidade: uma pobreza que atingiu 5,2 milhões de pessoas, chegando a 52,9% da população.
São quase 25 milhões de habitantes que não têm rendimentos suficientes para cobrir o cesto de compras, depois de a pobreza ter disparado 11,2 pontos percentuais no primeiro semestre, segundo informou esta semana o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (INDEC).
Num país habitado por 47 milhões de pessoas, a indigência deu um salto ainda maior, subindo 8,8 pontos percentuais, o equivalente a 4,1 milhões. Aqueles que não têm o mínimo para subsistir são, no total, 8,8 milhões, 18,8% da população argentina.
São mais de 7 milhões de crianças na Argentina que não têm suas necessidades básicas atendidas.
A pobreza é ainda mais implacável com as crianças. Ela afeta seis em cada dez menores de 14 anos (66,1%) e quase um em cada três (27%) vive na indigência. São mais de 7 milhões de crianças na Argentina que não têm suas necessidades básicas atendidas.
«É importante compreender que tudo isto não aconteceu durante o período Milei, porque no quarto trimestre de 2023 já havia 45 % de pobreza e 15 % de indigência», esclarece o sociólogo Agustín Salvia ao El Salto. «O primeiro trimestre foi o mais explosivo, o mais crítico, com a pobreza a subir para 55 % e a indigência a subir para 20 %, só que no segundo trimestre tendeu a baixar um ou dois pontos», avalia.
Mudança de ciclo
O diretor do Observatório da Dívida Social Argentina da Universidade Católica, cujo organismo permitiu medir a evolução da pobreza diante da falta de estatísticas oficiais confiáveis a partir da intervenção do INDEC durante o governo de Cristina Fernández de Kirchner (2007-2015), alerta que o país enfrenta o fim de um ciclo político e económico.
Esse modelo, instaurado após a convertibilidade que equiparou o peso argentino ao dólar durante o governo do ex-presidente Carlos Menem (1989-1999) e que resultou na crise social e económica de 2001, baseia-se no défice público e na alta inflação, segundo Salvia.
«É um esquema que se sustentava no consumo e no endividamento, ou na emissão monetária. Eram desequilíbrios macroeconómicos que geravam certo bem-estar, ilusão de mobilidade social, ou pelo menos de contenção, através de programas de aposentadoria e de um trabalho no mercado interno com baixa produtividade», explicou o sociólogo argentino.
No último ano, a taxa de pobreza entre pessoas com mais de 65 anos mais do que duplicou, passando de 13,2% para 29,7%
Os pensionistas não têm agora nada a comemorar com a atual administração, cujo presidente acaba de vetar uma lei que aumentava as aposentadorias. No último ano, a taxa de pobreza entre pessoas com mais de 65 anos mais do que duplicou, passando de 13,2% para 29,7%.
No início do seu governo, Milei desvalorizou o peso oficial em 54% em relação à moeda norte-americana, o que fez disparar os preços em 25,5% em dezembro e 20,6% em janeiro. A inflação continuou a aumentar até oscilar em 4% nos últimos meses, sem que os salários pudessem sequer se aproximar.
A queda dos salários reais, justamente, é um problema que remonta a 20 anos e que faz com que a produtividade média seja muito deficiente, segundo o diretor do Observatório da Dívida Social.
“Existem diferenças entre setores muito dinâmicos que competem no mercado internacional, como exportadores ou produtores industriais de serviços e comércio globalizado, ao mesmo tempo em que surge uma população excluída, confinada em empregos informais que criam a sua própria estratégia de sobrevivência”, detalha Salvia.
O sociólogo contrapõe como exemplo os migrantes informais que vivem na Europa e que geram o seu próprio emprego com pequenas vendas ou com a produção de serviços pessoais, sem conseguir aceder a empregos a tempo inteiro, mesmo que haja procura. «No caso argentino, não há procura para que esta população aceda a melhores empregos. Não é que ela fique segmentada por sua origem, mas não há atividade econômica suficiente das pequenas e médias empresas para que ela possa ser incorporada”, observa.
Duas gerações argentinas passaram por esse processo. “A situação tendeu a se agravar, pois para manter um clima de bem-estar é preciso manter um alto nível de consumo, atualizar os programas sociais, gerar melhorias salariais e executar um investimento público que dinamize a economia”, explica Salvia.
Essas políticas não são sustentáveis quando a dinâmica é sustentada por emissões monetárias, défice público, inflação e endividamento interno ou externo, argumenta o especialista argentino. Mas essa situação agravou-se com o governo de Alberto Fernández (2019-2023).
«Milei é o resultado do fim de um ciclo», afirma o diretor do Observatório. «Quem quisesse governar tinha que reduzir a inflação e desmantelar a armadilha da pobreza implícita nesse modelo, embora também não esteja claro se isso ocorrerá com as regras propostas pelo atual presidente».
Tensão crescente
A construção de uma nova Argentina, como Milei prometeu há seis meses, não é algo que se vislumbre no momento, e o país começa a sofrer com o desgaste económico e social que se acelerou nestes meses, segundo prevêem as últimas pesquisas: pela primeira vez desde a sua posse, há uma clara erosão da imagem positiva do presidente de extrema direita.
No ocaso de um regime que dá os seus últimos suspiros, o desemprego ainda é relativamente baixo (7,6 %), mas coexiste com uma informalidade que afeta 50 % dos empregos e que cresce sistematicamente há doze anos, de acordo com Salvia.
A comunidade universitária convocou uma marcha para o dia 2 de outubro, um sinal de alerta para o Executivo que tem um precedente não muito distante: em 23 de abril, uma grande marcha tomou conta do centro de Buenos Aires
Prevê-se um aumento da conflituosidade social na Argentina. Sirva de exemplo o atraso salarial dos trabalhadores das universidades públicas, que é de 50% em relação à inflação, e está longe de ser assumido pelo governo. De facto, Milei anunciou que vetará uma lei aprovada no Congresso que aumenta o orçamento dos centros de ensino superior e atualiza os salários dos professores e do pessoal administrativo.
A comunidade universitária convocou uma marcha para 2 de outubro, um sinal de alerta para o Executivo que tem um precedente não muito distante: em 23 de abril, uma grande marcha tomou conta do centro de Buenos Aires e das principais cidades do país, com a participação de 800 mil pessoas somente na capital e um milhão de pessoas em todo o território, naquela que talvez tenha sido a manifestação mais multitudinária dos últimos anos.
Autora: Ana Delicado Palacios
Fonte: https://www.elsaltodiario.com/argentina/argentina-asiste-mayor-nivel-pobreza-20-anos-milei-presidente