Durante décadas, falou-se da multipolaridade como uma hipótese, uma teoria, uma tendência longínqua. Hoje, já não é uma previsão - é um dado do terreno. O mundo está a reorganizar-se, não em torno de uma única potência dominante, mas através de um mosaico de centros estratégicos: Washington, Pequim, Moscovo, Nova Deli, Riyadh, Teerão, Bruxelas, Pretória. E é neste novo quadro que um projeto antes visto como “gigantesco demais para ser real” regressa com força: o Canal Eurásia - a ligação fluvial monumental entre o Cáspio e o Mar Negro.
Não é apenas uma obra de engenharia. É uma declaração política. E uma das mais simbólicas do século XXI.
Porquê agora? Porque o tabuleiro mudou. Nos últimos anos, assistimos a três movimentos estratégicos que mudaram tudo: A viragem dos Estados Unidos para o Sul e o Indo-Pacífico. Washington sinaliza que as suas prioridades já não são as grandes infraestruturas euroasiáticas nem o controlo dos corredores energéticos continentais. A Europa deixa de ser o “epicentro” e passa a ser apenas mais uma esfera entre várias.
A consolidação dos BRICS como bloco económico e geopolítico
O alargamento do grupo - e o interesse de dezenas de países - mostraram que há procura por alternativas aos circuitos dominados pelo Ocidente. Para os BRICS, controlar rotas próprias de comércio e energia é tão importante como ter moeda própria, bancos próprios e alianças tecnológicas próprias.
O reposicionamento da Rússia e da Ásia Central
Isolada dos mercados europeus e pressionada por sanções, Moscovo procura novas rotas para escoar energia, cereais e mercadorias. Cazaquistão, Uzbequistão e Turquemenistão procuram autonomia estratégica e novas saídas para o mar. O Canal Eurásia responde exatamente a isso.
O Canal Eurásia não é apenas possível - tornou-se provável. Quando este projeto foi apresentado há mais de uma década, parecia um exercício académico: caro, politicamente sensível e tecnicamente ambicioso. Mas o contexto atual mudou a equação:
- A Rússia tem incentivo económico e estratégico para investir.
- A China vê no canal uma rota alternativa às vias marítimas dominadas pelos EUA.
- O Irão e a Ásia Central ganham acesso direto ao Mar Negro e ao Mediterrâneo.
- O Ocidente está distraído, dividido e centrado noutras prioridades.
E, acima de tudo, a multipolaridade exige infraestruturas multipolares. Rotas próprias, cadeias de logística independentes, corredores comerciais que não dependem de uma única potência marítima. Por isso, o canal deixou de ser um “plano futurista” e passou a ser uma peça lógica da reconfiguração global.
A grande mensagem que o canal envia ao mundo
Se e quando as obras começarem - e há sinais que isso pode ocorrer ainda nesta década - o Canal Eurásia transmitirá três ideias fortes:
- O mundo euroasiático está disposto a integrar-se sem pedir autorização ao Ocidente e é uma infraestrutura que responde a necessidades regionais, não a agendas externas.
- Os BRICS deixam de reagir e passam a construir. Durante anos, foram um fórum político e económico. Agora, começam a tornar-se uma força infraestrutural, como o Ocidente foi no pós-Guerra.
- A Europa fica perante uma escolha difícil. Enquanto discute dependência energética, valores e alianças estratégicas, o continente pode acordar tarde para uma nova realidade:
as grandes obras do século XXI estão a ser desenhadas noutros lugares - e redefinirão o comércio global com ou sem a sua participação.
Um mundo com duas grandes opções... O cenário multipolar cristaliza-se em duas grandes esferas logísticas e económicas:
A esfera ocidental:
- Rotas atlânticas, mediterrânicas e Suez
- Cadeias centradas na UE, EUA e aliados
- Regras e padrões baseados no comércio liberal
A esfera eurásia:
- Infraestruturas lideradas por China, Rússia, Irão e Ásia Central
- Corredores terrestres e marítimos alternativos (Nova Rota da Seda, Corredor Norte-Sul, e agora o Eurásia Canal)
- Mais autonomia estratégica e menor dependência do Ocidente
O Canal Eurásia será, se avançar, a primeira infraestrutura capaz de traduzir fisicamente esta divisão do mundo em duas grandes opções. Será o “Suez da multipolaridade”. E por isso esta obra é mais do que cimento e escavação. É o símbolo de uma época em que:
- os centros de poder já não são exclusivamente ocidentais,
- as decisões estratégicas se descentralizam,
- o comércio deixa de passar apenas por oceanos controlados pela NATO,
- e o coração do mundo - a Eurásia - volta a ser um eixo decisivo, como foi durante séculos.
Se o século XX foi o século do Atlântico, o século XXI poderá ser o século dos corredores eurásicos. E o canal entre o Cáspio e o Mar Negro pode ser a peça que faltava para fechar este puzzle.
Autor: João Gomes in Facebook
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