A guerra raramente começa no dia em que os primeiros tiros são disparados. Normalmente começa décadas antes, em armazéns esquecidos, em inventários herdados, em decisões políticas tomadas sob o signo da transição e da ingenuidade histórica. O conflito na Ucrânia é um exemplo quase didático dessa verdade incómoda.
Quando a União Soviética colapsou, deixou para trás não apenas fronteiras mal resolvidas e identidades políticas frágeis, mas também um gigantesco espólio militar. A Ucrânia recebeu uma herança pesada demais para um Estado recém-nascido: tanques, aviões, sistemas de defesa aérea, fábricas de armamento e, por um breve e inquietante momento, um dos maiores arsenais nucleares do planeta. Era um poder que não correspondia a uma soberania amadurecida, nem a uma economia capaz de o sustentar de forma transparente. Era, sobretudo, um convite à ilusão.
Essa abundância de meios convencionais criou a percepção de que a Ucrânia era, por definição, um país militarmente resiliente. Durante anos, essa percepção foi reforçada pela exportação massiva de armamento soviético para África, Médio Oriente e Ásia, muitas vezes em esquemas opacos onde o interesse nacional se confundia com fortunas privadas. O arsenal herdado funcionou como colchão económico, mas também como anestesia estratégica: não houve urgência em repensar a defesa, nem em antecipar a transformação tecnológica da guerra.
Talvez aqui resida uma ironia cruel da história. Se a URSS tivesse deixado menos tanques e mais problemas explícitos, menos aviões e mais vazio estratégico, a Ucrânia teria sido forçada mais cedo a pensar a guerra de outra forma ou... a não entrar em nenhuma. Teria dependido mais rapidamente de ajuda externa, sim, mas também teria sido empurrada para soluções assimétricas, tecnológicas, menos dependentes da massa e mais da inteligência.
A resistência inicial de 2022, tão celebrada, deveu-se em grande parte a esse legado convencional ainda disponível. Mas foi também esse mesmo legado que atrasou a verdadeira modernização do conflito.
Enquanto isso, o Ocidente preparava-se para a última guerra. Investiu em stocks de munições clássicas, em carros de combate de milhões, em doutrinas desenhadas para campos de batalha que já não existem. A NATO, tal como a Europa, continuava a pensar em termos de divisões blindadas e superioridade aérea, quando a realidade começava a apontar noutra direção.
Os primeiros drones militares não surgiram na Ucrânia. Nasceram discretamente no final da Guerra Fria, desenvolvidos sobretudo pelos Estados Unidos e por Israel, inicialmente como plataformas de reconhecimento. O Predator, símbolo dessa viragem, foi concebido não para duelos épicos entre exércitos, mas para vigiar, localizar e eliminar alvos específicos, longe do olhar público.
Durante anos, os drones foram vistos como ferramentas periféricas, quase exóticas, úteis em conflitos assimétricos contra insurgentes mal armados. Ninguém os levou verdadeiramente a sério como protagonistas de uma guerra convencional entre Estados.
A Ucrânia mudou isso. Não por génio estratégico isolado, mas por necessidade. Quando os tanques começaram a faltar, quando a artilharia se tornou escassa, quando o custo humano se tornou politicamente insustentável, o drone barato revelou-se mais eficaz do que o blindado caro. Um engenho de alguns milhares de euros passou a destruir máquinas de guerra que custam milhões. O soldado invisível venceu o soldado de aço. A tecnologia, finalmente, ultrapassou o fetiche da massa.
Aqui está a influência negativa do passado: o excesso de meios convencionais adiou a adaptação. O conflito tornou-se um gigantesco laboratório a céu aberto porque só quando o velho arsenal começou a ser destruído é que o novo paradigma se impôs plenamente. E, ironicamente, essa modernização não nasceu de uma estratégia europeia ou atlântica clara, mas da improvisação, da escassez e da urgência.
Hoje, enquanto governos europeus anunciam planos para reconstituir armazéns de armas convencionais, talvez valha a pena perguntar se não estão, outra vez, a preparar-se para ontem. Um futuro conflito global dificilmente será decidido pela quantidade de tanques estacionados, mas pela capacidade de negar espaço, informação e tempo ao adversário. Sistemas baratos, distribuídos, tecnologicamente inteligentes e, sobretudo, menos dependentes do sacrifício humano direto serão muito mais dissuasores do que colunas blindadas desfilando em paradas militares.
Nada disto invalida a conclusão essencial, tantas vezes esquecida: a melhor modernização dos conflitos é evitá-los. Nenhum drone, por mais sofisticado, substitui a diplomacia. Nenhuma tecnologia corrige a ganância económica, a lógica de pilhagem ou a obsessão em sustentar modelos de poder baseados na apropriação das riquezas alheias. Mas enquanto os povos não conseguirem impor essa evidência aos seus dirigentes, a guerra continuará a reinventar-se.
E, como sempre, fará isso mais depressa do que aqueles que insistem em lutar com as armas do passado.
Autor: João Gomes in Facebook