Offline
MENU
O capitalismo feroz avança. Por que é tão difícil reagir?
“É hora de entrar numa nova etapa, outro desafio, e por que não? Mandar essa esquerda de merda se foderem”. Ricardo Salinas Pliego, multimilionário e possível candidato à presidência do México.
Publicado em 29/12/2025 15:03
Novidades

 

«Não se pode dar nem um milímetro à esquerda de merda, porque eles usam isso para destruir-nos. Não se negocia com essa merda.»
Javier Milei, presidente da Argentina

 

 

O que há algumas décadas parecia um caminho directo e desobstruído para uma sociedade pós-capitalista, hoje está fechado. Não digamos que esteja totalmente sucumbido, acabado de uma vez, enterrado para sempre. Mas, sem dúvida, obstruído.

 

Esse caminho encontrou obstáculos muito poderosos que dificultam o avanço. Será preciso desistir da luta, descartar os ideais de mudança ou, ganhando novas forças, tomar caminhos alternativos? Quais? De que maneira? Em todo caso, como superar essas barreiras sólidas que se ergueram, sabendo que o sistema, embora pareça vitorioso agora, não oferece saída para a humanidade? Nunca nos esqueçamos — isso deve dar-nos as forças que hoje parecem faltar — que agora apenas 15% da humanidade tem acesso a satisfatórias dignas, enquanto os 85% restantes passam por grandes dificuldades.

 

Durante a primeira metade do século XX, o discurso contestatório e anticapitalista foi ganhando cada vez mais força. Tudo isso permitiu que, em um bom número de países, se passasse a construir novos modelos sociais; é o que chamamos de socialismo. Na década de 1970, aproximadamente um terço da população mundial vivia em países que, com diferenças e estilos próprios em cada caso, mas todos com um denominador comum, caminhavam por um caminho que apontava para superar o capitalismo.

 

Ali estavam a União Soviética, a República Popular da China, Vietname, Laos, Cambodja, Cuba, Nicarágua, Coreia do Norte, Europa Oriental (países signatários do Pacto de Varsóvia), várias jovens repúblicas africanas que começavam a romper as suas correntes coloniais (Burkina Faso, Congo, Angola), o socialismo árabe, Afeganistão.

 

Em sintonia com isso, em vários pontos do globo, sucediam-se muitas e variadas lutas sociais, com um ideal anti-imperialista sempre buscando propostas que levassem ao socialismo. Lá estavam as insurgências guerrilheiras, os sindicatos combativos, os movimentos sociais e estudantis, a Teologia da Libertação da Igreja Católica, um despertar anticolonial e inúmeras manifestações que prometiam um novo futuro.

 

Mas o sistema capitalista reagiu. Uma soma complexa de factores fez com que esses movimentos emancipatórios fossem se reduzindo ou se extinguindo. A queda da União Soviética — sem dúvida uma tragédia para a causa popular — foi um factor determinante nessa retracção que vivemos actualmente.

 

Hoje, meio século depois daquela época, boa parte da humanidade parece caminhar na direcção contrária. Ou, mais correctamente, é levada a caminhar nessa direcção: conquistas laborais e sociais alcançadas com anos de luta e sacrifício são perdidas, retrocede-se no âmbito dos direitos conquistados, acaba-se glorificando os próprios algozes, que podem ser alegremente eleitos em uma votação, colocando no poder representantes da extrema direita, fomenta-se cada vez mais o supremacismo e o racismo xenófobo, avança-se em direcção a propostas neofascistas que pareciam já extintas para sempre, a consciência das populações é cada vez mais estupidificada através de tecnologias muito eficazes, através de “espelhos coloridos” cientificamente construídos, o pensamento crítico é substituído por banalidades e uma cultura de imediatismo e superficialidade que surpreende, as lutas e reivindicações populares são desarticuladas, condenando-se o discurso comunista com uma força superior à que usava a Inquisição medieval, as experiências socialistas que ainda sobrevivem neste mar de direitização são apresentadas como a evidência eloquente do fracasso da ideologia socialista (as pessoas fogem de Cuba!, gritam os meios de comunicação comerciais, sem falar do bloqueio), a noção de «trabalhador» é substituída pela de «colaborador», as lutas são fragmentadas apoiando determinadas reivindicações pontuais, sem dúvida muito importantes — género, questões étnico-culturais, diversidade sexual, cuidado do meio ambiente —, ignorando um tema básico como a luta de classes, a partir da máxima «dividir para vencer», promovendo assim a falta de unidade. Muitos ex-militantes comunistas baixam os braços e acabam por se tornar social-democratas… ou passam abertamente para a direita. O que está a acontecer?

 

Tudo isso, que nos mostra um panorama bastante desolador para o campo popular, não significa que a ideia de um mundo pós-capitalista tenha sido apagada da história. Torna evidente, em todo caso, a grande dificuldade em que nos encontramos aqueles que apostamos em algo que supere o desastre social que vivemos hoje para encontrar esses caminhos libertadores. Mas deve ficar claro que o sistema capitalista, embora agora se levante vitorioso, continua a ser aquela serpente venenosa que nos subjuga e mata (20 mil pessoas morrem diariamente por falta de alimentos, sendo que há comida de sobra no mundo: 40% a mais do que o necessário para nos alimentar muito bem a todos). Este sistema só cria bem-estar para uma pequena parte da humanidade; o resto… que se desenrasque!

 

Agora, com este capitalismo predatório levado a um grau superlativo, a população é apenas uma variável de ajuste, um número. Se alguém passa fome, segundo a lógica em jogo, é porque «não se esforçou o suficiente». Sem dúvida, neste momento, como forças de esquerda, estamos a perder a luta.

 

Só para ilustrar, vejamos alguns dados que nos mostram como estamos no mundo: o Parlamento da Grécia acaba de aprovar uma lei que prolonga a jornada de trabalho — com carácter excepcional, segundo argumenta — até um máximo de 13 horas diárias, o que abre a porta para que isso se torne uma constante e outros países imitem a medida. Onde ficam as oito horas diárias, conquistadas em lutas históricas que custaram vidas e muito sofrimento? Nos Estados Unidos, cujo presidente arrogante se permite dizer em público que grande parte da migração que chega ao seu país vem de «países de merda» (sic), por autorização legal, aprovada pela Suprema Corte de Justiça, são potencialmente suspeitas as pessoas com características latinas e que falam espanhol. Ou seja: por causa da aparência (estamos a voltar ao nazismo de um século atrás com a crença na «raça superior»?). Na Bolívia, após 20 anos de governos socialistas que trouxeram inúmeras melhorias sociais, a população acaba por votar em candidatos de direita que falam uma linguagem antipopular sem esconder a sua ideologia supremacista e de direita. Na Argentina, que há anos vem caindo em picada com uma população já à beira da fome e do desespero, um ultradireitista que se apresenta com uma máscara de louco continua vencendo as eleições, apesar do monumental tornado destructivo que seu governo está a trazer. Por que ele volta a ganhar as eleições?

 

As pessoas são burras ou estão a tornar-se tremendamente burras? Somos tão inúteis na esquerda que não sabemos reagir, ou a direita é atroz, vil, disposta a absolutamente tudo para não perder nem um milímetro de privilégios? É ética a ameaça que Trump faz a Milei de que, se ele não ganhar as eleições, não haverá crédito para a Argentina? Pelo que se pode ver, a voracidade capitalista dá para tudo: torturar, usar armas atómicas (Hiroshima e Nagasaki), mentir, fazer desaparecer pessoas, violar mulheres, chantagear e um sangrento e monstruoso etc.

 

A esquerda, sem que se possa dizer que seja santa — ninguém é —, não recorre a esses recursos. Como esquerda, estamos desorientados, isso é inegável: somos tolos ou a questão é mais complexa? Do campo popular, da esquerda, surgiram pensadores e estrategas muito importantes, analistas de grande capacidade e militantes com uma ética inabalável. Será possível dizer, de forma quase frívola, que «a esquerda não sabe o que fazer» — sem que ninguém indique o caminho —, ou estamos perante situações tremendamente confusas, com múltiplas causas, muito complicadas, em que o inimigo de classe, sem a mínima ética, pode dominar tudo? As duas citações que figuram no epígrafe podem ilustrar os tempos que correm.

 

O brasileiro Henrique Canary descreve com precisão a situação que vivemos a nível mundial: «A classe trabalhadora «clássica» (fabril) está a decompor-se, a desestruturar-se, a dedicar-se às aplicações, às bicicletas Glovo e aos carros Uber. A economia — e com ela a classe trabalhadora — está a tornar-se uma plataforma. O movimento sindical está em crise e tem enormes dificuldades para organizar as pessoas. As desfiliações são massivas. Os sindicatos tornam-se estranhos à classe trabalhadora e à sua vida quotidiana. Poucos respondem aos seus apelos. A propaganda neoliberal coloca uns trabalhadores contra outros. Os grevistas são «preguiçosos», sobretudo os funcionários públicos, que são «privilegiados» e «não querem trabalhar». Tudo isto se deve à incapacidade e estupidez da esquerda?

 

A solidariedade e, mais ainda, aquilo que hoje parece uma raridade, mas que era fundamental no passado, chamado de «internacionalismo proletário», têm vindo a desaparecer. Como bem diz Atilio Borón: «Prevalece, em vez disso, um individualismo radical incentivado pela uberização do capitalismo de plataformas, cujo reflexo no plano das ideias e atitudes é uma rejeição radical ou uma indiferença marcante em relação a qualquer estratégia de ação colectiva e, portanto, a sindicatos, partidos e associações de base territorial».

 

O sistema sabe defender-se muito bem. É claro que a sua classe dominante — essa minúscula elite que vive como reis à custa da exploração das grandes massas humanas — não deseja de forma alguma perder os seus privilégios. Mais ainda: não está disposta a ceder nada, cada vez menos, nem um milímetro. Se com a social-democracia e o Estado de bem-estar social os pobres tiveram um respiro, agora o capitalismo atual — voraz, criminalmente predatório — não dá trégua. Os dados apresentados acima mostram como estamos. Há até quem fale de um “tecnofeudalismo”, ou seja: uma involução histórico-social para um modo de produção já superado, mas com características de ultramodernidade. É evidente que, após o avanço popular nas primeiras décadas do século passado, o sistema soube reagir. E essa batalha – mas não a guerra – está a ser ganha.

 

Definitivamente, o que poderia ter sido avançado nas primeiras décadas do século XX a partir do campo popular, agora ficou obstruído. O sistema está a ganhar-nos neste momento da luta. Mas a história não acabou. Se se fala da terrível possibilidade de uma nova guerra mundial — extermínio da humanidade? —, isso significa que o movimento não para e, embora a robotização e a inteligência artificial nos esmaguem, nós, pessoas de carne e osso, continuamos a reagir.

 

O que foi dito anteriormente não é uma mensagem resignada e desmobilizadora, que assume o actual momento de refluxo na luta como uma derrota definitiva. Não, de forma alguma! É uma consideração crítica do que estamos a viver, para tentar ver por onde seguir. É mais do que evidente que continuam a haver protestos, mal-estar, revoltas, reações. Acontece que todo esse potencial não encontra os canais adequados para derrubar o sistema. Por que a esquerda não consegue conduzir esse descontentamento? Leia novamente os dois epígrafes.

 

Este modesto texto — talvez intelectualmente tolo, mas que não perdeu as esperanças — não pretende dar pistas sobre o caminho a seguir. É, com toda a honestidade, um apelo para não baixar os braços, tentando refletir sobre a necessidade de encontrar novos caminhos na luta. Como Einstein teria dito: “Se fizermos sempre a mesma coisa, obteremos os mesmos resultados”. Portanto, visto que hoje os caminhos tradicionais para a luta popular da esquerda não estão a dar resultados e a direita está a esmagar-nos, será preciso inventar novas formas? Por onde começamos?

 

 

Fonte: Prensa Latina

 

Via: cubasoberana.com

 

Comentários