Hoje, é Hiroshima.
Hoje, é preciso lançar um grito contra o esquecimento para que lembrar o horror.
Este é o meu contributo, inspirado na memória poética de Herberto Hélder.
E estou profundamente inquieto!
[...]
HIROSHIMA, OU O ANJO NEGRO DAS COISAS INVISÍVEIS
um relâmpago caiu sobre o coração dos homens
um sol fabricado por bestas,
por cientistas com bata e morte no bolso
o céu abriu-se em cogumelo —
não para dar sombra,
mas para extinguir o nome das crianças
os ossos das mulheres foram escritos com fogo
e as ruas tinham a textura do grito
ninguém disse: perdão.
ninguém disse: condeno.
ninguém disse: fomos nós, os bons, os democráticos assassinos
ninguém foi julgado — porque os vencidos enterram os seus mortos
e os vencedores enterram a verdade
o presidente sorriu numa sala climatizada
e uma cidade inteira transformou-se em oração de cinza
os corpos evaporaram mais depressa que a memória
mas a memória ficou: uma criança sem olhos,
um sino rachado no centro do peito,
o relógio parado às 8h15 —
e a eternidade a correr para trás
os que desejam a guerra nuclear
têm o cérebro feito de silício e orgulho
são senhores de botões,
são crianças grandes a jogar xadrez com a extinção
há os que ainda rezam por Hiroshima
e os que desejam Nagasakis futuros
— não em nome do mal, mas da ordem,
não em nome do ódio, mas da paz
essa paz que mata primeiro para não ter de morrer depois
Herberto, se pudesses, escreverias com sangue e luz
e este poema seria um espelho:
cada letra um cadáver,
cada verso um tribunal que não aconteceu
eu escrevo isto para que se saiba:
os deuses estavam ausentes
e os homens eram deuses do horror
ninguém foi condenado.
ninguém se ajoelhou no pó.
ninguém restituiu os nomes.
ninguém devolveu o corpo da mãe ao filho que chorava no escuro
mas tu que lês,
tu que tens a boca cheia de sol,
tu que ainda tens pele e sombra e nome — não esqueças.
repete comigo como um exorcismo:
HIROSHIMA.
HIROSHIMA.
HIROSHIMA.
Postado por José Santos Pinto no Facebook