O arranjo diplomático saído da reunião no Alasca, levando em conta as circunstâncias, não poderia ter sido mais favorável aos russos, além de benéfico ao presidente Trump e também aos verdadeiros interesses nacionais americanos de longo prazo, assunto que pretendo abordar futuramente.
Em primeiro lugar, vamos à escolha do local. Ao aceitarem a deslocação a um território americano, os russos deram um voto de confiança - e mostraram deferência - aos EUA. Facto importante em si pois demonstra simbolicamente a vontade russa de reconciliação, apesar de todo o histórico de traições das últimas décadas e, especialmente, da atitude belicosa e desrespeitosa da Casa Branca durante a administração Biden. O presidente Trump ganha, graças a este favor, uma carta poderosa contra os seus adversários internos e externos. Também é importante ressaltar a escolha do Alasca.
Para além de simbolizar a história partilhada entre os EUA e a Rússia, é o território onde as duas nações quase se tocam e ao mesmo tempo mais distante do mundo Atlântico e, por extensão, da Europa.
Daquilo que se sabe do arranjo, vale a pena ressaltar os seguintes pontos:
1 – A Casa Branca abandonou a ideia de um cessar-fogo imediato.
2 – A Rússia concorda em aceitar um cessar-fogo se a Ucrânia retirar as suas forças do Donbass, em troca da retirada das suas tropas nas províncias de Sumi, Carcóvia e Dnipropetrovski, aceitando uma linha divisória na actual linha de contacto em Kherson e Zaporíjia.
3 – A Ucrânia não poderá entrar para a NATO, mas poderá receber garantias de segurança fora do âmbito da NATO.
Há outros pontos no arranjo, mas são estes os pontos fundamentais para, ao meu ver, compreendermos o que se passa e o que está em jogo.
Sabemos que nenhum acordo de paz baseado nesses pontos será um acordo de paz permanente, até porque a política externa americana pode mudar sob uma nova administração, e isto, depois de tudo o que o Kremlin aprendeu desde os acordos de Minsk, seria uma derrota para a Rússia e um erro histórico imperdoável para a actual presidência russa. Sendo assim, cabe explicar a razão pela qual considero este arranjo uma vitória avassaladora russa.
Em primeiro lugar, porque a Casa Branca abandonou de vez a ideia de um cessar-fogo imediato, que era o maior entrave a qualquer progresso nas conversações com a Rússia. Na minha opinião, se tratava claramente de um ardil para causar mal-estar entre a actual presidência americana e o Kremlin, impelindo Trump a retomar a política da presidência anterior. Vimos que o ardil quase funcionou.
Em segundo lugar, porque o arranjo é inaceitável tanto para o regime de Kiev como para os seus aliados europeus, ou seja, está condenado ao fracasso - e os russos sabem disso. Porém, e aqui reside a genialidade do arranjo, é o compromisso possível para que a presidência Trump possa apresentar um acordo de paz que não pareça uma capitulação e, diante da recusa mais do que certa de Kiev, Bruxelas e Londres, possa abandonar a Ucrânia sem que isto pareça uma simples desistência do presidente Trump, e a aceitação de garantias de segurança à Ucrânia, fora do âmbito da NATO (ou seja, sem o compromisso americano), reforça este ponto. Ou seja, as concessões russas não terão efeito negativo para a Rússia, mas dão a Trump uma saída honrosa e até mesmo vitoriosa.
Ele poderá futuramente, diante da conclusão mais do que certa do conflito, que no mínimo obrigará a tomada pelos russos de todos os territórios a leste do Dnieper, além das províncias de Mikholaiv e Odessa (e dos territórios além-Dnieper das províncias de Kherson e Dnepropetrovsk), e o estabelecimento de um regime amigável em Kiev, afirmar aos seus detractores que o arranjo alcançado no Alasca teria sido muito melhor para a Ucrânia e para a própria Europa.
E é aqui que a camisa de Sergey Lavrov entra e compreendemos o engenho da diplomacia russa. Ali não havia nenhum simbolismo, mas sim mero artifício. Ciente de que as previsíveis lideranças europeias, além dos seus aliados e instigadores neo-cons nos EUA, tentariam encontrar ali algum significado oculto, ou não tão oculto, e se aproveitariam disso para minar o arranjo do Alasca, ele usou a retórica dos seus adversários, que em parte tenta induzir a opinião pública a acreditar que a presidência Putin ambiciona restaurar a União Soviética, para os empurrar com mais força para a armadilha narrativa em que eles próprios se enfiaram, rejeitando o acordo, com um gesto espirituoso.
Assim sendo, Putin e Lavrov abriram uma porta para o desnorteado Trump sair do hospício pela porta da frente e meteram uma camisa de força no maníaco de Kiev e nos seus enlouquecidos aliados europeus. Bravo!
Autor: Carlos Velasco In Facebook