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Além dos fogos, há um colapso dos serviços públicos
Publicado em 20/08/2025 10:30
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Sou filha de dois engenheiros florestais. Percorri o país com os meus pais e o meu irmão, dormindo nas antigas casas dos serviços florestais, num tempo em que se comia numa tasca, barato, onde se sentavam engenheiros e guardas florestais, lado a lado. Não era prova de bondade cristã. Éramos um país menos desigual entre o campo e a cidade. Também mais respeitoso do trabalho manual - sobretudo depois da revolução. Também havia mais autonomia no trabalho - fui levada pelos meus pais para o trabalho, e era cuidada, pelas empregadas de limpeza (eram fixas, não acordavam às 4 da manhã para limpar sem as vermos), pelos guardas florestais nos trabalhos de campo e, claro, pelos colegas dos meus pais. Tolerantes, com duas crianças que eram crianças a ser crianças, eu e o meu irmão, fazedores de muitas asneiras, graças a Deus, costuma dizer-se.

 

Os meus pais passavam tanto tempo no campo como no gabinete. Fui com ele, de Lisboa ao Algarve, quase só por estradas de terra batida, onde se comia perdizes na serra do Algarve, em lugares sem luz eléctrica. Uma vez estava com a minha mãe no Alentejo, em Alter, e o senhor que conduzia o trator, no qual a minha mãe era erguida na pá para verificar as experiências dela sobre sobreiros, chegou pela manhã, com o cunhado, e a minha mãe disse-lhe, sempre a brincar de braços abertos, “hoje vem com companhia!”. Ele respondeu - contamos isto até hoje - num alentejano perfeito, determinado “trouxe o meu cunhado, porque ele nã acredita que levo uma engenhera na pá dum trator”. A minha mãe foi, quase aos 70 anos, para as montanhas da Argélia, rodeada de dois carros de homens armados, para fazer um plano de florestação de sobreiros.

 

Não sou engenheira florestal, sou testemunha de como tantas vezes lhes acenaram com um salário muito maior se fossem trabalhar para as celuloses e eles recusaram. Acreditavam no que faziam. Ao lado deles, e eles ao lado dos colegas, tantos vi, a manterem a espinha erecta, e tantos, fui sabendo, se entregaram ao lobby do lucro da exportação da pasta de papel. A que se junta uma burocracia de funcionários que nunca lutou para subsídios à agricultura sustentável ou plantação de carvalhos. Para a UE Portugal é um resort turístico de trabalho barato.

 

Desde Pedrogão - e agora todos o dizem em directo nas TVs - ninguém confia nas “autoridades “ da proteção civil. Que sequer chegam aos locais. Apesar do esforço hercúleo de bombeiros que se arriscam. Além dos fogos, há um colapso dos serviços públicos. Mas já em 2005, recordo, estávamos num belo parque em Oliveira do Hospital à beira rio com amigos, crianças, e o meu pai ligou-me, disse-me irritado para sair dali, respondi-lhe que não havia fogo algum, “isso é só eucaliptos, em horas se há um fogo não há nada a fazer”. Viemos embora . Em Pedrogão, recordam-se, a GNR desviou carros para uma estrada onde as pessoas morreram (nunca se fez o balanço disto) e, agora, as aldeias ficaram sozinhas, de pá e balde na mão, David contra Golias. A defender a sua casa, que é a sua vida. Ao mesmo tempo - parece tão longe de Portugal - do PS de Costa, ao Chega que apoia Israel, passando por este risível governo AD, e a IL de Millei, aprova-se no mundo um pacote de investimento em guerra e o genocídio em Gaza, futuro resort. Só há um povo que resiste hoje no mundo - o palestiniano. Sós, a morrer à nossa frente.

 

Não há planeamento da produção e do território, em Portugal, nem meios, porque vivemos o ocaso apocalíptico do capitalismo em que para empresas e Estados sobreviverem - em concorrência uns com os outros - planeiam a guerra e todos os meios são investidos na destruição. A experiência dolorosa que os portugueses estão, na sua maioria a fazer, é entender o colapso do Estado Social e a ascensão do Estado de Guerra. Aliás- quantos não vieram dizer nas TVs essa obscena frase “não podemos manter direitos na Europa, porque “vêm lá os russos””. “Não pode haver Estado Social e ao mesmo tempo investimento de 5% em defesa”.

 

Por isto, a luta política organizada é o alfa e o ómega do nosso tempo, o fio que nos liga de uma aldeia ardida na Beira Alta a uma Palestina bombardeada, onde só há uma coisa a fazer. Organizar. Fazer da Política uma tarefa de todos. Onde estão os sindicatos, comissões de trabalhadores , de moradores, de aldeia , partidos a dizer “nem um euro para a guerra”?

 

O que há a fazer é a mesma coisa que o líder cartista - o primeiro movimento operário da história - disse no seu discurso em Manchester no século XIX - “só tenho três coisas a dizer, organizem-se, organizem-se, organizem-se”. Ou como diz o poema de Shelley, escrito aliás em homenagem ao cartismo, “Vós sois muitos, eles poucos”.

 

 

Raquel Varela - Professora Universitária, Historiadora

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