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A Bíblia hebraica tem uma palavra para o genocídio em Gaza: 'herem'
Não se trata de saque ou escravização, mas de apagar o inimigo do mapa
Publicado em 27/08/2025 09:30
Novidades

Por Marcelo Rede, na Folha de São Paulo

 

Se os projetos políticos de Israel e Donald Trump avançarem, Gaza pode viver um "herem" moderno: a destruição total de um povo, como descrito nas páginas mais sombrias da Bíblia hebraica.

 

Quando se fala em Gaza, a palavra comum é guerra, ocupação ou conflito. Mas a Bíblia hebraica, que ainda influencia a política da região e o pensamento moderno, traz um termo mais duro: "herem".

 

Em textos como Deuteronômio 20:17 e Josué 6:17, "herem" significa "consagração à destruição total". Não é apenas derrotar o inimigo. É eliminar por completo uma população, suas casas, colheitas e até animais —muitas vezes declarando que isso é feito "para Deus" ou para "purificar a terra". É guerra total, justificada como necessária e correta.

 

A imagem mostra uma cena de destruição em uma área urbana, com prédios danificados e escombros espalhados pelo chão. Várias pessoas estão presentes na cena, algumas carregando objetos, enquanto outras estão em movimento. Um menino, vestido com uma camiseta azul, está carregando um saco. O ambiente parece caótico, refletindo os efeitos de um conflito ou desastre.

 

O "herem" bíblico é a aniquilação completa de um grupo ou cidade, declarando-o "interdito", isto é, retirado da esfera humana e entregue ao juízo divino. Não se trata de saque ou escravização, mas de apagar o inimigo do mapa. Por isso o texto insiste: "Não deixarás com vida coisa alguma que respire" (Deuteronômio 20:16).

 

Esse tipo de linguagem aparece nas narrativas de conquista de Canaã e reflete uma mentalidade de guerra sem distinção entre combatentes e civis.

A noção pode parecer distante, mas serve de alerta atual: se certos planos para Gaza forem implementados, veremos algo que se aproxima de um "herem" moderno —em linguagem de hoje, um genocídio.

 

Nos últimos meses, as declarações de B. Netanyahu e Donald Trump caminham nessa direção: o apagamento de Gaza como território palestino. A guerra conduzida por Israel segue o mesmo roteiro: deslocamentos forçados, massacre de civis, destruição das condições de sustento, demolição de escolas e hospitais, bloqueio da ajuda humanitária. Fala-se até em campos de confinamento para palestinos.

 

A ofensiva militar brutal e a retórica que desumaniza o adversário aproximam o cenário da lógica do "herem".

Ler Gaza à luz do "herem" bíblico não significa que Israel esteja "seguindo a Bíblia". Significa reconhecer que certas práticas políticas e militares, em qualquer época, reproduzem padrões antigos de violência. Neles, a destruição total de uma população é justificada como necessária para a segurança, pureza ou ordem de um Estado.

 

A força do termo "herem" está em nomear não só o ato da guerra, mas a intenção de apagar a existência do outro. É isso que hoje chamamos de genocídio. Se os planos de Netanyahu e Trump se concretizarem, Gaza deixará de ser apenas palco de um conflito para se tornar um processo sistemático de destruição da vida palestina. O risco é que o "herem" deixe de ser apenas uma categoria bíblica e passe a descrever a realidade contemporânea.

 

A história mostra que genocídios raramente acontecem de um dia para o outro. São preparados por anos de desumanização, isolamento e destruição gradual das condições de vida.

Usar a noção de "herem" como alerta não é retórica religiosa. É afirmar que a combinação das políticas atuais com propostas desastrosas pode levar à aniquilação de um povo diante dos olhos passivos do mundo.

 

Marcelo Rede, é doutor pela Universidade de Paris e professor de história da USP

 

Folha de São Paulo, 20.ago.2025

 

https://www1.folha.uol.com.br/.../a-biblia-hebraica-tem...

 

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