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O fim de Nihad Muhammad: uma militante pela libertação da identidade pessoal e da condição feminina
Publicado em 23/11/2025 12:30
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Por Wisam Zoghbour, desde Gaza

 

Na história do movimento nacional palestino, são muitos os nomes que carregaram armas, ou que assinaram acordos, ou que se destacaram nos campos da política e da organização. Mas poucos conseguiram reunir, como fez Nihad Muhammad, a luta nacional, a ação feminista e uma visão intelectual libertária. A militante acreditava que a libertação não se mede apenas pela quantidade de terra que recuperamos, mas também pelo grau de liberdade que conquistamos para a mulher e para o ser humano dentro da própria sociedade palestina.

 

Nihad Muhammad não foi apenas uma dirigente da Frente Democrática para a Libertação da Palestina, nem apenas um rosto feminino de destaque na União Geral das Mulheres Palestinas. Foi, antes de tudo, uma mente crítica e um espírito libertário à frente de seu tempo, recusando qualquer separação entre a dignidade da pátria e a dignidade da mulher. Deixou um legado que ainda ecoa até hoje, apesar dos anos transcorridos desde sua partida em 30 de junho de 2015.

 

1. De Tiberíades às arenas da luta nacional: o nascimento de uma consciência precoce

Nihad Muhammad nasceu em 1948, na cidade de Tiberíades, no mesmo ano que testemunhou a grande Nakba. Sua primeira consciência foi impregnada do cheiro das primeiras tendas do exílio e das histórias das mulheres que carregaram suas casas nas costas e continuaram vivendo apesar do colapso estrondoso do mundo que conheciam. Na infância, experimentou o significado da perda; na juventude, conheceu o significado da revolução; e na maturidade, carregou nos ombros uma dupla missão: libertar a pátria e libertar a mulher.

 

No início da década de 1970, com a intensificação da luta guerrilheira, Nihad Muhammad ingressou na Frente Democrática para a Libertação da Palestina, e logo avançou rapidamente até se tornar membro do Comitê Central da Frente em 1973. Sua posição não se sustentava apenas em um cargo organizacional, mas em sua capacidade de pensar criticamente e formular um discurso que conectava sociedade, política, cultura e direitos humanos.

 

2. Uma mulher no coração da batalha… sem pedir permissão

Nihad não foi do tipo que espera reconhecimento ou portas abertas; entrou nas arenas da luta nacional com uma audácia que muitos consideravam chocante, numa época em que a participação política feminina era limitada ou associada a papéis simbólicos. Mas ela insistiu para que sua presença fosse ação, e não slogan.

 

Nos corredores da Frente Democrática, era conhecida por suas opiniões rigorosas e por uma voz franca que não fazia concessões. Não hesitava em criticar políticas internas ou dirigir observações à liderança, considerando que um movimento nacional incapaz de se autocriticar está condenado à estagnação. Ao mesmo tempo, via que a luta nacional perdia seu sentido se não incluísse a defesa da mulher e de sua dignidade.

 

3. Entre libertação nacional e libertação feminina: uma visão que não separa as frentes

Num período em que o movimento nacional dava prioridade absoluta ao combate à ocupação, Nihad Muhammad dizia uma frase que provocou grande controvérsia: “Não há libertação de uma pátria que pede à mulher que permaneça no fim da fila.”

 

Essa filosofia acompanhou toda a sua trajetória e foi a base de seu trabalho feminista, que não era um luxo intelectual, mas uma extensão da própria luta nacional. Quando participou da fundação da associação Al-Najda para o Desenvolvimento da Mulher, e depois assumiu a presidência de seu Conselho Diretor, afirmava que qualquer projeto nacional que não abra às mulheres a porta da liderança é um projeto mutilado.

E na União Geral das Mulheres Palestinas, da qual foi vice-presidente, impulsionou a construção de uma agenda feminista que elevasse a participação política, enfrentasse a mentalidade da “mulher ativista nas datas comemorativas” e defendesse, em seu lugar, a “mulher atuante na tomada de decisões”.

 

4. Pensamento libertário… e postura sem concessões

O discurso de Nihad Muhammad se distinguia por maturidade política e cultural. Não via o movimento feminista apenas como reivindicação social, mas como um projeto libertário integrado ao projeto de libertação nacional. Considerava que a ocupação e o pensamento patriarcal são duas faces da mesma moeda: repressão, marginalização e imposição de poder pela força ou pelo costume.

 

Em uma de suas falas célebres, afirmou: “A ocupação te impede de ser livre em tua pátria, e a sociedade patriarcal te impede de ser livre em tua própria casa.”

 

Essa frase, com toda sua simplicidade, resume sua filosofia: a mulher não pode combater a ocupação enquanto permanece acorrentada em sua sociedade; e um povo que vive injustiça diária não pode reproduzir a injustiça dentro de seu lar.

 

5. O projeto Al-Najda… construir uma instituição feminista, não apenas uma associação

Por meio da Al-Najda para o Desenvolvimento da Mulher, Nihad Muhammad não trabalhou apenas para oferecer serviços tradicionais, mas instituiu uma filosofia organizacional baseada em:

 

▪︎ empoderamento econômico e político das mulheres;
▪︎ disseminação de uma cultura de igualdade por meio de programas de conscientização;
▪︎ apoio a mulheres vítimas de violência e reconstrução de sua autoestima;
▪︎ inserção de conceitos feministas no discurso nacional;
▪︎ formação de uma nova geração de quadros femininos qualificados.

 

Ela deixou sua marca em todas que passaram pela instituição, até que Al-Najda se tornou um dos pilares do trabalho feminista na Palestina.

 

6. Companheira da revolução e voz da mulher… nos momentos mais difíceis

Nihad Muhammad vivenciou os capítulos da revolução palestina em Beirute, Damasco, Túnis, Cisjordânia e Gaza. Atuou no trabalho clandestino, organizacional e público. Lidou com mulheres que perderam maridos e filhos, com prisioneiros lutando atrás das grades e com refugiados buscando uma pátria dentro das tendas.

 

Não era uma dirigente teórica; estava presente no campo, organizando seminários, supervisionando campanhas e carregando a dor da mulher palestina, que tantas vezes se encontra vítima simultaneamente da ocupação, da pobreza e da discriminação.

 

7. Uma partida que deixou um vazio… e uma memória que não desapareceu

Quando Nihad Muhammad faleceu em 30 de junho de 2015, foi organizado para ela um velório oficial com a presença de líderes da União Geral das Mulheres, dirigentes da Frente Democrática e ativistas feministas de diferentes grupos políticos. Não foi uma homenagem protocolar, mas um reconhecimento de seu papel como um dos nomes mais importantes do movimento feminista palestino nas últimas décadas.

Após sua partida, a militante Amal Hamad escreveu: “Nihad foi um título honroso para a mulher e para a revolução palestina.”

 

E dirigentes da Frente Democrática escreveram: “Partiu em corpo, mas sua voz permanece um marco na história de nossa luta.”

 

8. O que torna Nihad Muhammad diferente hoje?

Num momento em que o papel da mulher palestina na política, na resistência e na sociedade volta a ser discutido, a trajetória de Nihad Muhammad parece mais inspiradora do que nunca. Ela foi:

 

▪︎ um modelo de mulher líder que não esperou a legitimidade social, mas a impôs com seu trabalho;
▪︎ uma combatente que vinculou libertação nacional e libertação social;
▪︎ uma pensadora feminista à frente de seu tempo ao conectar ocupação e patriarcado;
▪︎ uma construtora institucional cujo legado permanece além de sua vida;
▪︎ uma voz crítica dentro do movimento nacional, e não apenas mais um nome em suas fileiras.

 

E embora muitas das causas pelas quais lutou ainda persistam – como a marginalização das mulheres em espaços de decisão, a ausência de justiça social e o aumento da violência baseada em gênero – seu legado segue sendo fonte para construir e horizonte para renovar.

 

9. Um legado que nos ensina como resistir… e como nos levantar

Hoje, diante dos desafios enfrentados pelo povo palestino – agressão contínua, cerco, divisão política, pobreza e violência social – a voz de Nihad Muhammad soa como um chamado de outro tempo: “Não esperem uma libertação externa enquanto as correntes internas ainda existem.”

 

As mulheres da Palestina que estão na linha de frente, que lideram o trabalho de direitos humanos, que escrevem e carregam a ferida e a responsabilidade são a verdadeira continuidade dessa militante.

 

Nihad Muhammad não foi apenas uma figura histórica; foi um projeto intelectual completo. Um projeto que via a mulher como protagonista, não como seguidora, e a liberdade como um caminho duplo: liberdade da pátria e liberdade do ser humano. Entre essas duas liberdades, caminhou com firmeza, decidida a deixar uma marca que permanecesse após sua partida.

E deixou.

 

Edição de texto: Alexandre Rocha

 

Wisam Zoghbour é jornalista, Membro da Secretaria-Geral do Sindicato dos Jornalistas Palestinos e Diretor da Rádio Voz da Pátria

 

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